Por Marly Winckler
A palavra Yoga vem do sânscrito yuj, que significa união. Segundo a filosofia hindu, a alma humana, ou Jivatma, é uma faceta ou expressão parcial da superalma, ou Paramatma, a Realidade Divina, fonte do universo manifestado. Embora, em essência, os dois sejam o mesmo e indivisíveis, ainda assim, Jivatma tornou-se subjetivamente separado de Paramatma e está destinado, depois de atravessar um ciclo evolutivo no universo manifestado, a unir-se outra vez com Ele, em consciência. Este estado de unificação dos dois, bem como o processo mental e a disciplina por intermédio da qual esta união é atingida, são ambos chamados de Yoga1.
Patanjali foi o grande compilador da tradição milenar da Yoga – e o fez de maneira magistral. O sistema delineado por Patanjali constitui-se de oito partes, denominado Ashtanga Yoga. O sistema contempla oito angas ou membros, concebidos como estágios que se sucedem numa sequência natural. São eles: yama, niyama, asana, pranayama, pratyahara, dharana, dhyana, samadhi.
Construção do caráter
Os dois primeiros angas do Yoga, yamas e niyamas destinam-se a prover uma base moral adequada para o desenvolvimento do Yoga. Para os propósitos desse artigo ficaremos apenas com yamas, o primeiro aspecto.
Yamas são os votos de autorrestrição ou abstenções e compreendem cinco partes: ahimsa (abstenção da violência), satya (verdade), asteya (abstenção de roubar) brahmacharya (abstinência sexual), aparigraha (abstenção da cobiça). Para os propósitos desse artigo, nos concentraremos tão somente no primeiro tópico de Yama, ahimsa.
Ahimsa é a abstenção de todo e qualquer tipo de violência. Não significa apenas não matar, mas não infligir voluntariamente qualquer dano, sofrimento ou dor a qualquer ser vivo, por palavras, pensamentos ou ações. Significa o mais alto grau de inofensividade.
Ahimsa é parte da preparação preliminar para a prática do Yoga, base para a construção do edifício de muitos andares que é. Sem esta base moral não é possível avançar muito no Yoga integral, ficando o praticante restrito a posturas físicas (asanas) e respiração (pranayama), e não dispondo, portanto, dos elementos indispensáveis para o Yoga superior constituído pelos estágios mais avançados: pratyahara, dharana, dhyana e samadhi. Tão somente a prática das posturas já traz benefícios, mas Yoga é bem mais do que isso.
Não causar violência ou dano a nenhum ser vivo é parte integral de ahimsa. Alimentar-se de uma forma que não cause violência ou dano a nenhum ser vivo é um de seus requisitos. O vegetarianismo, não por acaso, está indissoluvelmente ligado à prática do Yoga e, não por acaso, a Índia, berço do Yoga, é também um país tradicionalmente vegetariano. Isso desde tempos imemoriais, quando as condições com que os animais eram tratados e abatidos não chegavam nem perto das barbaridades e crueldades com que hoje isso acontece.
Tipos de alimentos
Segundo a tradição hindu, a construção do corpo físico resulta do alimento e da bebida que ingerimos e, naturalmente, a qualidade de seus elementos constituintes depende, em grande medida, da qualidade deste alimento. O conhecimento da natureza das diferentes espécies de alimentos e a experiência possibilitaram aos estudiosos indianos classificá-los em diferentes categorias. A classificação mais familiar é a divisão em três grupos: tamásico, rajásico e sátvico. Alimentos tamásicos são aqueles que estimulam a inércia, rajásicos os que produzem atividade, e sátvicos os que produzem harmonia e ritmo. É no último grupo que o praticante de Yoga tem de basear, tanto quanto possível, a sua alimentação2. A carne está classificada no primeiro grupo.
Os grãos de onde sairão novas plantas e que estão cheios das substâncias mais nutritivas, os frutos, todos os produtos cujo próximo desenvolvimento, no decurso do ciclo vital, é o crescimento, são alimentos rítmicos, saturados de vida, próprios para constituírem um corpo ao mesmo tempo sensível e vigoroso, mais apropriado ao praticante de Yoga3.
Impactos da alimentação centrada na carne
A alimentação centrada na carne além de impor enormes sofrimentos aos animais também gera fortes impactos para o meio ambiente. Por outro lado, a saúde humana se beneficia muito com a alimentação vegetariana. Um bom praticante de Yoga deve gozar de boa saúde, pois, como diz Rohit Mehta, com um corpo enfermo e uma mente doentia não é possível avançar na senda do Yoga4.
Saúde
Várias organizações internacionais de renome como a American Heart Association (AHA), a Food and Drug Administration (FDA), o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA), a Kids Health (Nemours Foundation), o College of Family and Consumer Sciences (University of Georgia) e a Associação Dietética Americana têm parecer favorável ao vegetarianismo, esta última afirmando inclusive que os profissionais da área da nutrição têm o dever de incentivar aqueles que expressam intenção de se tornarem vegetarianos.
O vegetariano tem risco reduzido de doenças crônicas e degenerativas, como cardiopatias, câncer, diabetes, obesidade, osteoporose, doenças da vesícula biliar e hipertensão. O vegetariano tem 31% a menos de cardiopatias, 50% a menos de diabetes, vários cânceres a menos, sendo 88% a menos de câncer de intestino grosso e 54% a menos de câncer de próstata, só para citar alguns5.
Meio ambiente
O impacto ambiental causado pela criação de quantidades exorbitantes de animais para suprir (e estimular) a demanda por carne é colossal. Só no Brasil são criados anualmente cerca de 200 milhões de bovinos e cerca de um bilhão de frangos, galinhas, suínos etc.6
De acordo com a FAO, a pecuária está entre as três principais causas de qualquer problema ambiental significativo, incluindo a degradação da terra, mudanças climáticas e poluição do ar, escassez e contaminação de água e perda de biodiversidade.
O consumo de carne bovina é a principal causa das queimadas, do desmatamento, do assoreamento dos rios e da perda de biodiversidade, do uso e da contaminação das águas, entre outras mazelas ambientais, como a geração de quantidades exorbitantes de dejetos animais. O consumo de outras carnes (frango, porco, peixe etc.) e produtos de origem animal (laticínios e ovos) igualmente gera enormes impactos.
Alguns fatos
Desmatamento
A indústria da carne é a principal responsável pela derrubada das florestas (80% da destruição da Amazônia deve-se à pecuária e à soja, para virar ração para animais). A criação de gado é responsável pelo desmatamento de 93% da Mata Atlântica, 80% da caatinga, 50% do cerrado e 18% da Amazônia7.
Aquecimento global
No relatório A grande sombra da pecuária, a FAO afirma que os gases emitidos pelos excrementos e flatulências, pelo desmatamento para abrir pastagens, somados à geração de energia gasta no manejo do gado respondem por 18% dos gases-estufa emitidos anualmente no mundo. Segundo este relatório, a pecuária agrava mais o efeito estufa do que o setor de transportes, responsável por 13% das emissões8.
Uso e contaminação da água
A indústria da carne é responsável por mais da metade da água consumida para todos os fins. São necessários cerca de 15 mil litros de água para gerar um quilograma de carne bovina, ao passo que são necessários apenas 195 litros para se obter 1 quilograma de feijão, 42 litros para se obter 1 quilograma de batata etc.
Cada quilograma de carne gerado em sistema de confinamento deixa para trás 7 a 9 litros de excrementos, que não têm como ser absorvidos pela terra. Esses resíduos vão diretamente para córregos, poços e lençóis freáticos.
Oceanos
A pesca industrial é extremamente predatória. Os oceanos estão entrando em colapso rapidamente. Até 2006, 29% das espécies de peixes e frutos do mar já haviam entrado em colapso. O camarão rende apenas 2% do montante global pescado anualmente, mas responde por 35% do desperdício total. O “descarte” está hoje avaliado em 27 milhões de toneladas anuais, de peixes e outros organismos marinhos considerados “do tipo ou tamanho errado”9.
A maior parte dos peixes e outras criaturas marinhas capturadas anualmente não é consumida diretamente pelos seres humanos, mas dados como ração aos animais. São necessários 45 quilogramas de peixes selvagens para criar um quilograma de salmão criado em cativeiro10.
Insustentabilidade e ineficiência
Metade de toda a terra boa do mundo é destinada a pastagens. Metade da colheita mundial de grãos é consumida pelo gado no mundo todo. Criar gado é uma forma muito ineficiente de utilização dos recursos. São necessários em média 7 a 9 quilogramas de cereais e grãos para produzir um quilograma de carne de boi. A relação para carne de porco e frango é de 3,5 e 1,7 quilogramas, respectivamente.
Num mundo onde a fome é uma realidade, comer carne é eticamente inaceitável.
Impactos sociais
Além da pegada ecológica, os problemas sociais gerados pela indústria da carne são também muito graves. A maior parte das denúncias sobre mão de obra escrava realizadas no Ministério do Trabalho no Brasil vem da pecuária. Outro grande problema é o abate clandestino, responsável por aproximadamente 50% do mercado nacional, onde o trabalho infantil também é recorrente.
As condições de trabalho nos frigoríficos são degradantes e geram problemas físicos e psicológicos nos trabalhadores. Acidentes são corriqueiros. Nos frigoríficos os processos produtivos são agressivos. Ou o calor é excessivo, acima de 40 graus, chegando a 95 graus em vários pontos, ou muito frio, abaixo de doze, atingindo até 35 negativos nas câmaras frias. O barulho é ensurdecedor e os protetores auriculares reduzem pouco o nível de ruído.
A umidade está em todo lugar, proveniente dos vapores ou das mangueiras que incessantemente são acionadas para limpar o sangue do chão. O odor é desagradável, chegando a níveis insuportáveis em alguns setores como da triparia e bucharia. O ritmo da produção é alucinante, ditado pela velocidade das roldanas com ganchos que carregam nos trilhos os pedaços do animal, que vai sendo dissecado a cada seção11.
Crueldade com os animais
Inúmeras crueldades são cometidas na criação de animais ditos “de consumo”, ou seja, abatidos para virar comida. O sofrimento inerente ao abate não é o único aspecto a considerar. Imagens idílicas de fazendas onde os animais vivem felizes e contentes, junto à sua prole, povoam nosso imaginário, mas o agronegócio está tornando isso coisa do passado. A tendência hoje é criá-los em granjas industriais, onde vivem confinados e submetidos a tratamento cruel. Praticamente 100% dos porcos e frangos são criados hoje em regime de confinamento, e o gado e o peixe caminham para isso.
Os filhotes são separados da mãe assim que nascem e criados em condições abomináveis, totalmente artificiais, gerando muito estresse e doenças, combatidos com medidas ainda mais execráveis: corte do bico, do rabo, dos dentes e da genitália, tudo sem anestesia. Só saem dessa situação penosa para o abate. Ali, eles são depenados, esfolados, escaldados e esquartejados, na maior parte das vezes, ainda vivos.
Nunca na história da humanidade animais foram tão desrespeitados e maltratados como acontece agora em pleno século XXI nas granjas industriais. Como afirma Peter Singer “Os animais são tratados como máquinas que convertem forragem de baixo preço em carne de preço elevado, e qualquer inovação será utilizada se resultar em uma ‘taxa de conversão’ mais baixa12”.
De acordo com a FAO, mais de 52 bilhões de animais são mortos para comida por ano no mundo.
Comer carne e outros produtos de origem animal é um hábito bastante arraigado, sobretudo nas sociedades ocidentais. Muitos praticantes de Yoga no ocidente acreditam que precisam comer carne para ter a força exigida na prática das posturas. K. Pattabhi Jois, o criador do estilo de Yoga que mais exige aptidão física, o Ashtanga Vinyasa Yoga, afirmou claramente que a dieta vegetariana é uma exigência para a sua prática. O mesmo fez seu filho, Manju Jois, em recente visita ao Brasil. Pattabhi Jois inicialmente relutava em ensinar Yoga a ocidentais porque comiam carne. Somente abriu as portas para alunos ocidentais quando percebeu que estes poderiam se tornar vegetarianos, mesmo não tendo nascido vegetarianos13.
A humanidade clama por paz, mas a paz não será possível enquanto ela se associar todos os dias aos atos sangrentos e cruéis indissoluvelmente ligados à criação e ao abate de milhares e milhares de seres indefesos que, como nós, também sentem dor e terror.
Toda a crueldade e os demais impactos associados à carne e outros produtos animais não é compatível com o primeiro preceito do Yoga: ahimsa. A alimentação vegetariana é parte fundamental e integral de um mundo sem violência, saudável, sustentável e que respeita todas as formas de vida. É a dieta do praticante de Yoga.
Marly Winckler Coordenadora para a América Latina e Caribe da União Vegetariana Internacional, com sede na Inglaterra (www.ivu.org) e Presidente da Sociedade Vegetariana Brasileira (veja o site AQUI)
Notas
1. Taimni, I.K. A Ciência do Yoga. Editora Teosófica, 1996, p. 20.
2. Taimni, I.K. Self-Culture in the light of Ocultism. TPH: Madras, Índia, 1976, p. 56.
3. Annie Besant. Introdução ao Yoga, Círculo do Livro, p. 160
4. Rohit Mehta. Yoga a arte da integração. Editora Teosófica, 1995, p. 106
5. Posição da Associação Dietética Americana (ADA) sobre dietas vegetarianas. http://goo.gl/CacpD
6. IBGE, 2010.
7. João Meirelles Filho. Você já comeu a Amazônia hoje? http://goo.gl/twmKK
8. Livestock's long shadow: environmental issues and options, FAO, 2006. http://goo.gl/MQIXE
9. Paul Watson. Consider the Fishes, VegNews, março-abril, 2003:27
10. Impactos sobre o Meio Ambiente do Uso de Animais para Alimentação. SVB, 2007 p. 12. http://goo.gl/gn7Ty
11. Frigorífico deve adequar condições de trabalho. Repórter Brasil. http://goo.gl/G5n6w
12. Singer, Peter. Libertação Animal, Editora Lugano, Porto Alegre, 1990. p. 110.
13. Sharon Gannon. Yoga and Vegetarianism, p.26.
Mais sobre:
Yamas e Niyamas